quinta-feira, 2 de outubro de 2008

O último sumário...

A aldeia descansava no cimo de um cabeço, entre um espelho de água fria, recém-nascida — convidativa à contemplação do ventre da terra — e as ingremidades rugosas da serra carrancuda, impondo o seu corpanzil rochoso ao casario granítico minúsculo, discretamente aninhado num leito de carvalhos e sobreiros, parecendo torcer o nariz ao povo que, de sol a sol, lhe esgaravatava a pele. O ar transparente das montanhas rescendia à humosa textura do chão, ao feno seco e amarelado das medas coniformes, ao inconfundível hálito céltico do Gerês. Na calma vespertina daquele lugar primordial, retinia o silvo metálico de uma enxada, ressoando insistentemente contra as paredes da montanha, e o gemer de um carro de bois, que rasgava as estreitas e umbrosas ruas do burgo, adormecido sob o lençol de estio que o Agosto lhe impunha. Do cimo de um pequeno outeiro, sobre os cambados telhados de argila, espalhava-se um alegre chilreio de crianças, como floral perfume do futuro espargido sobre a aldeia. Vinha do recreio da antiga escola primária


Ladeado por dois ciprestes carregados de verde, o pequeno edifício, guardado por um muro já tolhido pelos arremessos do Inverno, jazia sobre um descampado, onde as plantas silvestres se tornavam senhoras, por usucapião. No seu rosto envelhecido, belos adornos de cantaria e uma haste, em diagonal, apoiada sobre uma pequena mísula de granito saliente da espessa alvenaria da parede. Por detrás, no antigo recreio, alguns rapazotes, em jeito caprino, disputavam a posse de uma bola mágica, que ziguezagueava ao ritmo frenético dos pontapés. Ao fundo do terreiro, duas pedras disformes compunham o cenário da baliza, para onde convergia a ilusão dos pequenos Ronaldos.

No interior da escola, um ar húmido e mofoso pesava sobre o soalho carcomido e atapetado pelo pó, que rangia os dentes a cada passo que eu ousava dar. Os esqueletos das carteiras, também eles em evidente decomposição, descaíam para o chão, para a terra que já foram, para aquilo em que haveriam de transformar-se, antes de ressurgir, em botânica forma. Ao fundo, sobre o estrado, a secretária, de sólida madeira de castanho, hibernando silenciosamente, resistia à vertigem do tempo, à voragem de uma época nua de ideais, devoradora compulsiva de raízes. Por trás, voltada para o quadro, a cadeira do professor parecia eternizar o último acto do mestre, quando dela se ergueu para escrever o último sumário, no quadro negro, sobre o qual era ainda visível a marca de um crucifixo, que alguém não deixou ficar ali, naquela sala vazia, penumbrosa, votado ao abandono.

Um véu de melancolia repousava sobre todo aquele lugar habitado pelas brumas de outrora, numa dimensão em que todos os gestos, todas as palavras, todos os sorrisos se perpetuam, para se repetirem infinitamente, até um dia poderem emergir do impossível.

Uma folha solta, esquecida num canto, sob a enorme vidraça esventrada, esperando debaixo de um xaile de tempo, despertou a minha atenção. Levantei-a pela ponta dos dedos e voltei-a para mim. Era este simples registo de um diário, já com três anos de dormência:

«Hoje a senhora professora ainda veio à escola, mas não tinha meninos, por causa da neve. Hoje, os alunos deram feriado à senhora professora!».
Luís Costa

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