quarta-feira, 31 de março de 2010

Onde mora a memória obscura...


Onde mora a memória obscura, onde
esse cavalo persiste como um relâmpago de pedra,
onde o corpo se nega, onde a noite ensurdece,
caminho sobre pedras na minha casa pobre.

Não conheço esse lago, não fui a esse país.
Mas aqui é um termo ou um princípio novo.
Com a baba do cavalo, com os seus nervos mais finos
reconstruí o corpo, silenciei os membros.

Não se estancou a sede, no mesmo caos de agora,
mas a língua rebenta, as vértebras estalam
por uma nova língua, por um cavalo que una

a terra à tua boca, e a tua boca à água.

António Ramos Rosa

domingo, 28 de março de 2010

Fragmento



Se o vento ao mar azul o calmo espelho afaga,
sem ondas levantar, a terra já não amo:
sorrisos de um sereno e de um tranquilo fundo
me tentam alma inquieta. Mas se o estrondo ecoa
do Oceano abismos turvos, e se a crespa espuma
coroa as altas vagas que rebentam fortes,
para a terra me volto e seus profundos bosques
onde os pinheiros cantam no soprar do vento.
Aquel' que o lenho habita e sobre o mar trabalha
dos fugitivos peixes só vivendo, tem
sorte mais triste. Eu lânguido me alongo aonde
o murmurar do rio ao espírito me anima,
sem que da paz o acordo ou súbito o perturbe.

Mosco de Siracusa
(Trad.: Jorge de Sena)

domingo, 21 de março de 2010

quinta-feira, 18 de março de 2010

Poema de Bocage

Autobiografia

De cerúleo gabão não bem coberto,
passeia em Santarém chuchado moço,
mantido, às vezes, de sucinto almoço,
de ceia casual, jantar incerto;

dos esbrugados peitos quase aberto,
versos impinge por miúde e grosso;
e do que em frase vil chamam caroço,
se o que, é vox clamantis in deserto;

pede às moças ternura, e dão-lhe motes;
que, tendo um coração como estalage,
vão nele acomodando a mil peixotes.

Sabes, leitor, quem sofre tanto ultraje,
cercado de um tropel de franchinotes?
– É o autor do soneto: – é o Bocage.


Bocage, in 'Rimas’

quinta-feira, 4 de março de 2010

"Quem muito viu..."



Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,

mágoas, humilhações, tristes surpresas;
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extremo da justiça justa;

e andou terras e gentes, conheceu
os mundos e submundos; e viveu
dentro de si o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi —

não sabe nada, nem triunfar lhe cabe
em sorte como a todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.
Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há-de encontrá-lo morto.

Jorge de Sena