domingo, 29 de junho de 2008

POEMA


PRODÍGIPO DO BARRO

O frio barro modela os dedos

Sofridos e brancos

No movimento que os dilata...

Crescem como um manuscrito novo

Vendo a seiva correr da água

Que alimenta a argila..

A mão indica-nos o cântico do fogo

Que aquece a fórmula mágica...

Então...surge o prodígio...

Salpicado de surpresas...


Safira

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Gotas de Orvalho

Olhei-te e o teu corpo não era de carne, mas de uma doçura quase vegetal
onde as pétalas e o orvalho misturavam suas gotículas transparentes.
Levemente as células transformaram-se em veludo de tom arroxeado que eu
beijei, primeiro com suavidade e a crença aprensiva que se tem ao sangue.
Depois, com a certeza de que aquele corpo era só nosso e só a nossa boca
nele podia poisar. Intacta, sem se ferir. Dormias. Calma. Mas no silêncio,
eclodiu uma corda musical e na língua senti a estranheza do seu frio. Queria
sorver-te, como às gotas desse sangue que, por vezes, os espinhos deixam
nos meus dedos, num frenesim de vida quando colho as rosas.
Desdobrei a roupa para melhor te fruir. O umbigo bem desenhado estava
embutido na macieza da ondulação da curva do teu ventre. Um suave odor
penetrava-me as narinas, adoçando-as.
Este era o meu corpo - branco e puro. Tacteei-te, porque trazia perfumes na
polpa dos dedos. E entornei-os, um a um, como quem toca nas teclas dum
piano, dando-lhes um estado subtil de vida. Não sabia ainda que, tu própria,
o tinhas calado. Por dentro.
Estavas deslumbrante, entregue, sobre a cama, como uma gema de ametista,
arroxeada.
Faltava-me o brilho dos teus olhos, sempre acesos. Alimentados por um
braseiro que só em ti descobri e que se adoçava cada dia mais, na luz
trémula da chama da vela. Tínhamos visto as velas roxas com brilhos
reconvertidos dos postais antigos. Poisei-as no mesmo momento e que soube
que nunca mais faríamos amor. Mas também sabia que voltaria lá para as ir
buscar. Queri-as para gozar a chama tentadora, e ve-las gastarem-se por
entre os perfumes consignados ao acto amoroso...
Chove. E a água afasta os pássaros para longe. Num despojamento, tangendo
a música inaudível das tuas vésperas. Tocada em instrumentos que não vejo,
na repercussão que me espanta tu não oiças. Nem eu.
Fico à espera que me chames. Que me devolvas o nome. O que só tu sabes.
Eu sou ele, o nome.
...Mas tu não o fazes!

Safira

terça-feira, 24 de junho de 2008

A Rosa Amarela


A rosa amarela encheu a casa com o seu perfume. Ela sentiu sempre que, entre si e as flores amarelas, existia um diálogo quase instituído. Longo, enleante, com desassombro. E dialogavam... Na vigília que a noite lhes consentia, quando esse perfume era mais extenso, mais imposto.
Ela perguntava-se por vezes como era possível que, mesmo não a conhecendo muito bem, as pessoas lhe oferecessem flores amarelas. Eram dádivas arcaicas da profundeza dos tempos, onde a intuição comandava sem outra explicação que não fosse a do inconsciente conformado por uma disciplina que a torna una, e impossível de ser outra.
E pensava na Filogenia.
Recebi-as, e o seu coração recuava a um tempo ainda próximo, mas tão distante que não sabia nem podia reconstruir. Dele tinha reminiscências que por vezes lhe acudiam aos sonhos, tornando-os quase mágicos. Era no entre o sono e a vigília.
Aí, procurava aninhar-se nos lençóis macios, mornos e ainda revoltos, que envolvia em si como uma protecção, ou talvez como uma memória.
Sabia que as mulheres, desde tempos remotos, se envolviam em panos, modelados depois, e apenas, pelo próprio corpo. Pela pele que lhes recobria a carne tumefacta e latejante de candura e desejo em simultâneo. Quantas vezes pensou que, bem no íntimo, se considerava viciosa. Mas seria depravação aquela sensação gostosa, que lhe criava desejos inconfessados? E o mais estranho é que, bem no fundo, só se desejava a si própria.
Olhava-se longamente ao espelho e queria-se. O espelho deseja-a e a tortura fazia-a infeliz porque sempre a quiseram impor «amorfa» , como uma insígnia...
Ela foi crescendo e com ela uma eutimia que a fez resistir e hoje desejar-se no seu corpo de mulher.
Nos seios túmidos cresciam os mamilos cor-de-rosa, tão vivo na auréola mate. Olhava-se como quem aprecia um prodígio da natureza. E a sua língua molhava-se... e só não lambia o espelho porque ao mesmo tempo tinha medo que que a sua imagem fosse virtual. Então tocava-se com uma fogosidade abrasadora e «amava-se» até ao desvario. Uma, duas, muitas vezes até se sentir – entre. E tudo recomeçava mal a roupa, que se enrolava ao corpo, tombava, mostrando-a inteira e nua de roupagens e grilhetas.
Ela sentiu profundamente o cheiro da rosa amarela.
Sentiu-a e amou-a
Porque aquela rosa, tinha o sol nas suas pétalas macias e carnudas. Podia tentar reproduzi-la; mas nunca seria aquela rosa. Sabia, lá no fundo do seu querer, que se não reproduz o que só a natureza cria. E por isso a olhava, enleada, apaixonadamente.
Colocou-a em frente ao espelho e ele, devolveu-a intacta. Tão apetecida.
Então, lentamente abriu a boca e quis perpetuar aquele momento. Beijou-a, sentindo o seu perfume, e depois, devagar, mastigou, mastigou- a (sem se achar nigligente) saboreando.
... E sentiu, sentiu que, o sol a penetrava, numa estranha simbiose. Agora, ela pertencia-lhe porque passaria a fazer parte do seu corpo, como já fazia parte do seu querer, como alma.
No lábio inferior, sentiu algo humedecido, e viu no espelho uma gota vermelha, escorrendo. Então, a língua sorveu – a . E era agridoce e acidulada. E havia no seu sabor um perfume estranho e quase inumano.
Mas as suas células responderam-lhe que a amavam. E sentiu-se mais forte no seu corpo de mulher: mulher/flor, mulher/sol, mulher/sangue, mulher/espelho de si própria. Num desafio permanente aos seus sentidos. Desafiando-se... desafiando a hipótese como princípio, sempre!
Por entre o «martírio da rosa» e as células que a desejaram e que um dia por intelecção cremaria para de novo renascer... num raio de sol, numa rosa amarela, numa – talvez, Mulher...

Safira